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COMPLEXO É O SEXO PORQUE DIVINO


Sexualidade é um assunto complexo. É um território sem fórmulas aplicáveis a todos, sem manuais infalíveis a nos socorrer.  Trata-se de um tema multiforme e transversal, pois suas virtudes e vícios se manifestam inesperadamente e dizem respeito a todas as facetas humanas ao mesmo tempo. Isto é, corpo e espírito estão envolvidos na esfera da sexualidade e estabelecem entre si uma intricada relação. Difícil trabalho é discernir até que ponto vai cada campo, até onde o problema é físico ou emocional ou de cunho espiritual. Com efeito, geralmente, as três áreas estão atuando simultaneamente. Isto aponta para o fato inelutável: não possuímos esferas engavetadas incomunicáveis, ao contrário, somos híbridos.


O que nos deixa uma importante questão: como devemos lidar com temas complexos? Antes da resposta é necessária uma reflexão paralela: há uma armadilha embutida nos assuntos complexos. Eles nos provocam ansiedade. E, nos ditos de Salomão: “a ansiedade no coração deixa o homem abatido”[1].


O sentimento de confusão diante da complexidade inerente à sexualidade gera ansiedade que dificulta o aprendizado e nos faz clamar por simplificações.

Não se engane. Há uma multidão viciada em simplificações baratas.

Vale destacar que esta é uma atitude frequente por ser confortável. É confortável por nos responder sucintamente às inquirições mais obscuras e sua rapidez decorre do fato de nunca passar da epiderme do problema. No mais das vezes, são soluções que partem de meias verdades e fazem cessar a conversa com frases feitas. Nada mais propício para quem deseja desesperadamente por uma resposta que diminua sua inquietação.

Todas as vezes que diante de um tema humano estamos preguiçosamente escolhendo pela resposta mais fácil cometemos o pecado do reducionismo burro. Estas saídas simplistas são arrogantes, pretendem saber explicar tudo e, em geral, apresentam-se como esquemas redondos, definitivos. Em suma, não buscam resolver a falta de conhecimento sobre algo, visam acalmar a ânsia que a falta de conhecimento gera em quem não entende algo. Aí mora o engano.

O pensador francês Edgar Morin é um teórico da complexidade. Muito embora, eu não endosse as conclusões de seu método, podemos acrescentar aqui sua definição de complexidade como “um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas. (...) A complexidade é um tecido de acontecimentos, ações, interações, interações, retroações, determinações, acasos, que constituem nosso mundo”[2].

É realmente muito interessante pensar a sexualidade como um tecido que vai tomando forma a partir de múltiplas fontes, com um nível de sofisticação tal que a torna impossível de ser decodificada apressadamente. Nesta visão, podemos atinar para a criatividade de Deus e sua maneira fina de se mostrar em nós. Tomás de Aquino[3] considerava Deus como a grande substância simples, isto é, aquele indivisível, completo e sem partes, portanto superior, aquele que causa todas as outras coisas; já nós, meras criaturas, somos fadadas à complexidade, passíveis de decomposição e de análise de nossos fragmentos e lascas. Muito embora seja verdade que estas partes devem estar integradas e minimamente coesas para assim ser possível termos saúde integral.

No sentido oposto, transitando pelo mais puro senso comum, ouço muitas pessoas afirmarem coisas do tipo: “a homossexualidade é totalmente determinada pela genética”; ou: “você é assim apenas porque foi abusado”; ainda: “este comportamento é provocado por um demônio ou por uma maldição hereditária”. Estas asseverações não dizem respeito a uma profunda análise do problema, em geral, são mistificações (algumas supostamente científicas) misturadas com psicologismo de botequim e com uma espiritualidade míope. Partem da extrapolação de algum fenômeno humano legítimo.

Explico. A genética (realmente fundamental na investigação sobre de quem somos e como atuamos) passa a ser a inequívoca e unitária razão de nossos comportamentos; somos, segundo esta simplificação, reféns do determinismo de nossos genes. Nesta verve, alguns estudos foram feitos, analisando o hipotálamo, o ouvido interno, a carga genética de gêmeos idênticos e, pasmem, até o cumprimento dos dedos das mãos das lésbicas na intenção de provar que a homossexualidade é inata. Nada conclusivo (não mostre o dedo, caso discorde).

Da mesma forma, seguindo o adágio sobre abuso sexual supracitado: as experiências traumáticas na infância explicariam matematicamente a aparição de um determinado problema. Isto é perigoso por produzir generalizações, pois a partir de experiências personalíssimas criam-se dogmas, ritos e tabus. O apelo destas formas de simplificação é enorme em grupos de fé, exatamente por ganharem ares de revelação aparentemente eficientes.

Inclusive, já vi tabelas nas quais metodicamente tipos específicos de abuso aparecem como causa de certos efeitos. Como se fosse possível tabelizar os seres humanos e todas as suas reações ao trauma e estabelecer um nexo causal supostamente irretocável. E mais, cansei de ver esquemas espiritualistas que distorcem valiosos livros sagrados no afã de entregar ao fiel um diagrama totalizante. Ou seja, um esboço perfeito e capaz de elucidar tudo, usualmente botando a responsabilidade em algum ente espiritual ou no passado infeliz da família do indivíduo.

Evidentemente, estes são pequenos exemplares da maneira enviesada com que tratamos a complexidade ligada à sexualidade humana. Poderíamos encher muitas páginas com outras pérolas.
Diante disto, volto à pergunta inicial: Como devemos lidar com temas complexos? Em primeiro lugar, assumindo não saber quando de fato não sabemos..

Veja, vivemos em uma cultura de redes sociais na qual todos parecem entender muito, e cada um tem sempre uma opinião feita sobre os assuntos mais obtusos. Somos ignorantes-tagarelas em rede. O pior tipo de ignorante, viciados em alardear sua arrogância prolixa. Falta-nos um tanto da atitude socrática de desconfiança sobre a multidão de nossas opiniões, ou uma pitada da “suspenção do juízo”[4], típica dos céticos gregos, ou ainda a sabedoria dos amigos de Jó que, em seu momento de melhor desempenho, ficaram calados frente ao inexplicável sofrimento do patriarca[5]. Foi só abrirem a boca (em textões dignos de redes sociais) que começou o desfile de conjecturas e fórmulas ocas pretensamente explicativas.

Neste mesmo embalo, outra maneira de lidar com a complexidade sexual humana é buscarmos uma atitude de respeito pela inexatidão da vida e pela originalidade presente em cada pessoa. O mundo, como nos comunica G. K. Chesterton[6], muito embora não seja totalmente ilógico, é uma “cilada para os lógicos”, para aqueles que desejam explicar racionalmente cada detalhe da vida.

Somos seres únicos, exclusivos e, ainda segundo Chesterton: “em todas as coisas, em toda parte, existe o elemento do misterioso, do incalculável”. Isto reforça a tese de que os fatos biológicos da sexualidade, os desejos, as relações, a trajetória histórica, as crenças e os símbolos operam como uma sinfonia ora clara, ora caótica, na formação do sujeito. O autor britânico também defende que a tradição cristã é adequada a realidade humana exatamente por ser flexível.

Ela corajosamente afirma certas verdades, contudo “seu plano se adapta às irregularidades ocultas e espera o inesperado”. Chesterton escreve que ao abraçar uma crença, uma pessoa “se sente orgulhosa de sua complexidade, como os cientistas se sentem orgulhosos da complexidade da ciência. O fato mostra como ela é rica em descobertas”.

Esta ideia é perceptível nas Escrituras Sagradas. Nelas, Deus não nos forneceu um manual frio capaz de prevê com agir em cada situação específica, nem um livro mágico a nos ensinar palavras secretas para fazer sumir coelhos pornográficos (da playboy) de nossas cartolas existenciais. Na contramão, o Eterno contou uma série de histórias nas quais homens e Ele mesmo se relacionam numa dança da complexidade. Mesmo quando os mandamentos foram revelados, Deus os insere na lógica do relacionamento com Sua pessoa. Não há como conhecer ou obedecer a Deus sem uma interação viva e orgânica com Ele.

Em suma, encarar a complexidade inerente à sexualidade e buscar endereça-la por caminhos conduzidos pela fé cristã não nos torna seres fanáticos ou bitolados. Ao inverso, nos abre para a compreensão dos aspectos biológicos, psicológicos, culturais e sociais, respeitando a contribuição de cada uma destas áreas. Daí nasce um rico diálogo entre fé e todo o resto do qual fluem belas descobertas.

Neste bojo, gostaria de sugerir outra atitude frente à complexidade sexual: considerar a sexualidade como uma esfera de valor.

Os fatos são importantes e deles concluímos que a sexualidade é uma zona de imensa relevância. Tanto as realidades consagradas pelo uso quanto o curso dos conhecimentos científicos lançam luzes sobre como a sexualidade humana se desenvolve. Neles, vemos aquilo que torna a sexualidade indispensável para a raça humana. A fé cristã entrará neste ambiente como mais uma estrutura garantidora de maior prestígio à sexualidade humana.

Podemos fazer conexões entre os fatos e nossas crenças cristãs, dialogando inteligentemente com múltiplas áreas do saber humano. Isto é fundamental para não ficarmos restritos aos jargões religiosos. Logo, pela crença, os cristãos encaram a sexualidade como dom do céu, como no belíssimo verso de Tiago: “Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vem do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de variação”[7]. Ademais, entendem dever glorificar ao Criador em suas escolhas sexuais, pois entregaram, voluntariamente, a direção de suas vidas a Ele, no que Paulo complementa “porque fostes comprados por bom preço; glorificai, pois, a Deus nos vossos corpos”[8]. Daí, conferirmos tanto cuidado e valor a sexualidade humana.

Já pela análise dos fatos (não tomados como objetos de fé) podemos desbancar várias ideologias falaciosas que pretendem redesenhar a maneira conservadora de se pensar sexualidade. As chamadas ideologias progressistas tem sido debatida com certo vigor nos últimos anos exatamente por negarem princípios factuais evidentes e buscarem uma deliberada desconstrução da família, da moral e da igreja. As teses sexuais da chamada “nova esquerda” estão repletas de argumentos “nonsense”[9], embora se vendam como científicas/racionais.

Deste modo, precisamos encarar a sexualidade, o sexo biológico e as noções de masculino e feminino como dimensões humanas preenchidas de sentido e valor intrínseco. É o que gênesis chama de “imagem e semelhança de Deus” que resplandecia perfeitamente na face de Adão e Eva. Seres complexos. Seres sexuais.

Segundo este olhar, as características inatas dos seres humanos e as conquistas familiares tradicionais se colocam, de acordo com as palavras de Roger Scruton[10], como “esferas de valor”, detentoras de um tipo específico de conhecimento humano. Conhecimento acumulado por centenas de gerações que nos antecederam.

Este conhecimento não torna previsível a sexualidade, nem desvenda o enigma pertinente às relações humanas. A complexidade continua a dar as cartas. Porém, considerarmos a sexualidade como uma esfera valiosa e digna de ser conservada apenas nos posiciona com maior respeito diante das complexidades do tema.

Ainda atentando à pergunta que inicia este capítulo, e como proposição derradeira para encararmos a complexidade da sexualidade humana sugiro uma postura comum aos antigos: a humilde dependência do Eterno.

Os cristãos são aqueles que optaram por uma vida de dependência, porque constataram que não se bastam. Reconhecem que em suas vidas existem necessidades apenas supríveis se Deus estiver na condução. A sexualidade e suas complicações reforçam essa visão exatamente por mostrar nossa incompetência frente ao complexo. E, quando um cristão não sabe algo, além de empreender todas as atitudes listadas acima, ele é chamado a uma atitude de oração.

A oração é justamente para quem não sabe, não entende, não chegou lá. É parte do trabalho de descansar em Deus e em sua vontade. Como já nos orientou São Bento, devemos “orar e trabalhar”, máxima que foi modificada por C. S. Lewis para: “orar é trabalhar”[11], pois é o ato de ir “lançando sobre Ele toda ansiedade”[12] que só aumenta quando não entendemos ou não controlamos plenamente algo. Diante disto, vale lembrarmos que Deus nos fez e para Ele nada é difícil, nada é complexo e ele “ele tem cuidado de nós”. Simples assim.

A partir do que celebrou Richard Foster na obra Celebração da disciplina[13], entendemos que para fazer frente a algo complexo, o cristão deve caracterizar-se por três atitudes interiores: “se recebemos o que temos como um dom, se o que temos recebe o cuidado de Deus, se o que temos esta disponível aos outros”. Esta é nossa oração. Saber viver a sexualidade como um dom divino (que esta em crise por toda parte), como uma dimensão cara ao Criador e por ele cuidada; e como algo que se torna mortal quando “disponível” somente a nossos interesses mesquinhos. Oremos.


[1] Provérbios 12.25
[2] MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Instituto Piaget. Lisboa: 1990.
[3] AQUINO, Tomás. O ente e a essência. Ed. Vozes. São Paulo: 2005.
[4] RUSSEL, Bertrand. História da filosofia ocidental. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.
[5] Jó 2.13
[6] CHESTERTON, G. K. Ortodoxia. Mundo Cristão. São Paulo: 2017.
[7] Tiago 1.17
[8] 1 Co 6.18
[9] SCRUTON, Roger. Tolos, fraudes e militantes: pensadores da nova esquerda. Ed. Record. Rio de Janeiro: 2018.
[10] _______. Como ser um conservador. Ed. Record. Rio de Janeiro: 2015.
[11] LEWIS, C. S. Oração: cartas a Malcolm. Ed. Vida. São Paulo: 2009.
[12] 1 Pe 5.7
[13] FOSTER. Richard J. Celebração da cisciplina. Ed. Vida. São Paulo: 1983.

Comentários

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